terça-feira, 23 de novembro de 2010

À memória de Fernando Pessoa - Antonio Botto

Se eu pudesse fazer com que viesses Todos os dias, como antigamente, Falar-me nessa lúcida visão - Estranha, sensualíssima, mordente; Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses, Meu pobre e grande e genial artista, O que tem sido a vida - esta boémia Coberta de farrapos e de estrelas, Tristíssima, pedante, e contrafeita, Desde que estes meus olhos numa névoa De lágrimas te viram num caixão; Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses, Voltávamos à mesma: Tu, lá onde Os astros e as divinas madrugadas Noivam na luz eterna de um sorriso; E eu, por aqui, vadio de descrença Tirando o meu chapéu aos homens de juízo... Isto por cá vai indo como dantes; O mesmo arremelgado idiotismo Nuns senhores que tu já conhecias - Autênticos patifes bem falantes... E a mesma intriga: as horas, os minutos, As noites sempre iguais, os mesmos dias, Tudo igual! Acordando e adormecendo Na mesma cor, do mesmo lado, sempre O mesmo ar e em tudo a mesma posição De condenados, hirtos, a viver - Sem estímulo, sem fé, sem convicção... Poetas, escutai-me. Transformemos A nossa natural angústia de pensar - Num cântico de sonho!, e junto dele, Do camarada raro que lembramos, Fiquemos uns momentos a cantar!




António Tomás Botto (Casal de Concavada, Abrantes, Portugal, 17 de agosto de 1897 - Rio de Janeiro, 16 de março de 1959) - Poeta e contista português, causou polêmica nos meios religiosos conservadores em Portugal quando publicou o livro Canções. Também foi amigo de Fernando Pessoa. Mudou para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, onde morreu atropelado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário