quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Variações Sobre a Morte, por Miguel Reale

Minha gente, li hoje um texto de um grande e um dos mais importantes juristas brasileiros, mas que não trata de nada do Direito, mas fala sobre a morte da entes queridos. É um texto muito, muito profundo, mas de uma beleza fora de série. É bom refletir sobre a vida, saber, como dizia Schopenhauer que ela é uma "situação provisória com uma solução permanente", que é a morte; entender o sentido do "carpe diem"e adotá-lo em nossa existência, para vivermos intensamente nossas paixões, nossos amores, nossas amizades, nossos prazeres, nossa vida!
Carlos Eduardo Gadelha

Ei-lo:



Variações Sobre a Morte
Miguel Reale
Estado de SP – 12/6/99
Depois que Nuce me deixou sozinho em nossa longa/breve história de
amor, o mundo passou a ter outro sentido, ficando martelando em
meus ouvidos a recordação dos versos de Giacomo Leopardi:
"....a un tempo stesso
Amore e Morte
Ingenerò la sorte".*
Acrescenta o poeta que o primeiro efeito da perda de um ente, que
verdadeira e profundamente se amou, é o desejo de morrer. Em
verdade, a primeira vontade é a do reencontro que somente a morte
possibilita, resultando dessa aspiração a crença ou o reforço da crença
na imortalidade da alma.
O paradoxo da existência humana é que nada é tão certo quanto a
morte, sobre cujo significado, no entanto, reina a incerteza, a começar
pela afirmação de que ela representaria apenas um fim material
inevitável. Norberto Bobbio, com cujas idéias tantas vezes coincido,
pertence à espécie infeliz dos
homens para os quais, após a morte, não há senão il buio, a
escuridão. Creio, ao contrário, - e é o amor a fonte primordial dessa
crença, vencedora de todas as perplexidades racionais – creio que a
alma se desprende do corpo e passa para outra forma de existir,
isenta de materialidade e, como tal, mais pura.
Dir-se-á que se trata de mera conjetura, mas esta é também uma
forma de verdade, a que nos resta quando falham as tentativas da
razão para explicar os fatos com base no esplêndido leque de sua
metodologia. Se até no domínio das ciências exatas admite-se, hoje
em dia, que sobre certos problemas fundamentais somente pode haver
meras conjeturas, que dizer do magno problema da morte?
O segundo efeito da morte de uma pessoa querida é deixar de vê-la
como um dano irreparável, uma ameaça que pesa sobre todas as
criaturas. Nada como a perda de um ente querido para reconciliarmonos
com a morte, deixando-se de temê-la para serenamente esperá-la
a fim de restabelecer-se o elo partido. Não que o desaparecimento
corpóreo possa pôr termo ao vínculo de um amor que dia a dia veio
aprofundando suas raízes, mas é o corpo, que perdura, o obstáculo a
atingir a verdade última, para a qual a razão não consegue dar
respostas válidas. Mas, insuficiente a razão, sobrevem a fé pelas vias
do amor.
A morte não representa, portanto, o termo final da pessoa que nos
deixou, pois de sua memória emerge a obrigação de viver como se ela
ainda estivesse presente, substituindo-a por inteiro. Essa é a herança
mais alta, a única que tem valor real. A morte é, assim, um comando
de amor aos que sobrevivem, uma exigência para que se dê
continuidade àquilo que antes se fazia, ao trabalho que não pode nem
deve ser interrompido. Amoroso trabalho que torna, então, binada a
nossa ocupação, como se dois passassem a trabalhar, um a inspirar e
o outro a fazer.
Quando quem morre se despede de uma família, na qual era o centro
de referência e de cuidados, pode-se dizer, em suma, que se herda o
amor familial como um acréscimo do ser. O desolado amante sente,
então, imperiosa necessidade de amar, de maneira diversa e mais
profunda, filhos, netos e bisnetos, com o ardor devotado àquela que
foi chamada a outra vida. Sim, porque a primeira conseqüência da
morte é, repito, robustecer-nos a crença em um ente que subsiste em
uma duração pura, que é a forma humana da eternidade divina, outra
conjetura a juntar-se ao nosso mar de conjeturas.
Por outro lado, a morte, que constitui uma fratura na teia de nossos
sentimentos, ensina-nos a ver o mundo com outros olhos. Aprende-se
a viver com lágrimas nos olhos quando menos se espera, ao acontecer
algo, por ínfimo que seja, capaz de suscitar uma lembrança. Surge
uma vida substancialmente dupla, uma perdida nas preocupações da
existência quotidiana, outra presa a uma visão transcendental, no qual
só têm sentido os valores essenciais, a espera a todo instante
convertida em esperança.
Não é exagero afirmar que sem a morte não teria significação a vida.
Imagine-se o homem imortal, para quem infância, juventude,
maturidade e velhice seriam palavras desprovidas de sentido, um
tempo sempre igual, no qual não haveria lugar nem para a esperança,
nem para a saudade.
A temporalidade existencial tem por si mesma um sentido de
provisoriedade, o outro lado de nossa finitude, constiuindo-se um
liame essencial entre a duração e o sentido da vida, o que tem sido
bem percebido pelos filósofos da saudade, a palavra que
misteriosamente engloba o passado e o futuro. Sentir saudade de um
ente amado é uma forma de ressuscitá-lo, de fazê-lo presente em
nossos empenhos quotidianos.9
Se o destino, no dizer do mais merencório dos vates, acima invocado,
gera, a um só tempo Amor e Morte, não é menos verdade que o amor
faz perdurar a imagem ou a figura de quem cerrou para sempre os
olhos, inserindo-a no âmago da consciência de quem saudosamente a
recorda. Se não descesse sobre meus olhos a luz da fé, na certeza de
um futuro reencontro, já bastaria o liame da saudade para endourar
de espiritualidade o inexorável fato da morte, libertando-a da
escuridão.
Embora possa parecer pretensão absurda, talvez se pudesse
proclamar: "felizes os que amam, que deles é o reino da morte".
Foi talvez por isso que, ao pé da sepultura de Nuce, senti o invencível
impulso de declarar, como numa prece, o que depois compus nestes
versos:
"Não mais porás teus olhos em meus olhos
Mas nos veremos pelo tempo afora
Pelos olhos de nosso eterno amor".

Nenhum comentário:

Postar um comentário